Um ano se passou.
Eu
estava sentada numa poltrona na recepção do hotel em João Pessoa, quando me
lembrei de uma de minhas conversas com Nina, no período em que fiquei afastada
de Inácio. Ela tinha dito:
-
Aproveite esse tempo que Inácio está te dando e reflita bastante. Você seria
capaz de engravidar por amor? Sua convicção de não ter filhos encontra respaldo
em seu lado mais espiritual, transcendente? Busque as respostas, Tessa. E,
quando chegar a uma conclusão, prepare-se internamente para as consequências,
sejam elas quais forem. Você tem, sim, razão ao dizer que os filhos mudam a
vida do casal. Se mudam! E não é para pior nem para melhor, a vida simplesmente
muda.
Fez,
então, uma pausa e completou:
-
Descubra do que realmente é feita e comece a lutar pelo que quer.
Tudo
mudou desde então.
A
aliança em meu dedo simbolizava o recomeço, a nova etapa de meu relacionamento
com Inácio, um relacionamento mais maduro, cuja nota essencial era a liberdade.
Éramos livres e estávamos juntos porque escolhemos um ao outro e a nossa
relação.
Depois
que ele voltou, decidimos nos mudar para a Vila Mariana. No início, tudo o que
queríamos era viver aquele momento. Sem pressão, sem cobranças. Não revivemos o
passado nem antecipamos o futuro. Tentamos nos equilibrar no presente.
Respeitamos o nosso reencontro.
Durante
muito tempo, eu havia insistido na segurança e na continuidade, no sentido de
permanência. Mas acabei entendendo que a única continuidade possível na vida
era o crescimento.
Senti
uma vontade súbita de falar com Nina. Tirei o celular da bolsa e disquei seu
número. Ela atendeu de imediato.
-
Como está se sentindo? – perguntou.
-
Muito bem. É maravilhoso não me sentir aterrorizada o tempo todo.
-
Como assim?
-
Com a possibilidade de engravidar.
Fiz
uma pausa e respirei fundo. Então, prossegui:
-
Achava que ficar grávida seria a pior coisa que poderia me acontecer, mas agora
que “o pior” aconteceu, não é tão mau. É até bom, para falar a verdade.
-
É até bom? Depois dessa posso dizer que já ouvi de tudo na vida... – Nina riu,
com gosto.
-
Sim, é bom. Não o tempo inteiro, é claro. Sinto enjoos, e isso está acabando
comigo. Além disso, tenho cólicas esquisitas, meus seios estão inchados e
doloridos, e estou mais melodramática. Sem dizer que estou engordando horrores e,
ao mesmo tempo, não posso comer o que gosto. Mas Inácio tem me paparicado como
nunca e – surpresa! – a gestação, por vezes, me emociona. Sinto uma coisa
esquisita todas as noites quando Inácio saca o estetoscópio, se debruça sobre a
minha barriga e passa um tempão auscultando o coração da nossa menininha.
-
Por falar nisso, já escolheram o nome?
-
Tenho um em mente, mas ainda não disse a ele...
-
Puxa, estou curiosa!
-
Você será a primeira a saber, se ele concordar.
-
Ótimo, então. Me ligue a qualquer hora, ok?
-
Pode deixar. E cuida bem da minha casinha, hein?! – brinquei.
Nina
fora passar aqueles dias com a família na Vila Mariana.
-
A propósito, Tessa, está tudo ótimo por aqui. Mas aconteceu um fato.
-
O quê? – perguntei, já preocupada com Bela.
-
O seu vizinho foi preso.
-
Quem? O Daniel?
Ele
andava meio sumido. Desde que eu e Inácio nos mudamos, eu mal o via. Achei que
fosse por nossa causa. Mas, mais uma vez, eu superestimava a minha importância.
-
Sim.
-
Meu Deus! Por quê? O que foi que ele fez?
-
Polícia Federal, minha filha. Operação Firewall. Ao que tudo indica, ele é um hacker procurado. Faz parte de uma
quadrilha especializada em fraudes pela internet. Roubavam mais de um milhão de reais por mês. Deu
até no telejornal.
-
Estou pasma... – me limitei a dizer.
-
A atividade de luthier era só
fachada.
Então,
eu não estava tão errada assim. Ele realmente guardava um segredo obscuro.
Considerando que as acusações fossem verdadeiras, é claro. Como advogada, eu
sempre partia do princípio da presunção de inocência. No caso de Daniel,
contudo, algo me dizia que ele era culpado. Quem diria?! Ele não mentiu quando
disse que, se quisesse, poderia trabalhar 24 horas por dia e que, por isso, se
dava o luxo de escolher os serviços. Agora eu não duvidava de que ele arrumava
mais “trabalho” do que conseguia dar conta. Enfim, Daniel, o homem mais
solteiro que já conhecera, foi parar atrás das grades. E me perguntei se
aquelas lesões faciais tinham sido mesmo causadas por um morcego.
Me
despedi de Nina, ainda em choque, no exato instante em que Inácio cruzava o hall do hotel, caminhando em minha
direção.
-
Vamos? Está na hora! – anunciou.
Decidi
não comentar nada sobre Daniel. Ele estava animado e alegre. Eu contaria em
outro momento.
Levantei e segurei a mão
que ele me estendeu.
Caminhamos
até a entrada do hotel, onde Inácio fez sinal para um táxi.
-
Ainda parece uma grande aventura – eu disse, afastando de vez o incidente com
Daniel dos pensamentos.
-
O quê? – ele perguntou, se acomodando ao meu lado no banco traseiro.
-
A gravidez – apontei a barriga de 5 meses.
-
Eu sei – ele sorriu, concordando. Você está com medo?
-
Um pouco – respondi, sinceramente. Não pensou que eu passaria de Cassandra a
Pollyanna num piscar de olhos, não é?
Ele
riu.
-
Nem quero isso – respondeu, com sinceridade. Nem Cassandra nem Pollyanna. Quero
a Tessa.
Aquilo
balançou meu coração. Inácio sabia dizer coisas simples e encantadoras ao mesmo
tempo.
-
Não vivo mais assombrada por um medo vago e constante, mas ainda tenho receio
das necessidades e complicações do cotidiano. Todos os dias, antes de me
levantar, respiro fundo, a fim de reunir coragem para continuar o que
começamos.
-
É natural, Tessa – ele disse, compreensivo. Seria estranho se fosse diferente.
-
Mas tem algo interessante: desde que engravidei, não tenho pensado com tanta
frequência na falta que a minha mãe me faz.
-
Sério?
Fiz
que sim com a cabeça.
-
Nem me importo de falar disso.
Ele
olhou surpreso.
-
Sempre tive horror a que o fato de minha mãe ter abandonado a família virasse
uma espécie de bônus e angariasse simpatia a meu favor. Não queria ser motivo
de pena. Por isso, estava sempre na defensiva, pronta para contra-atacar o que
quer que me parecesse uma ameaça. Isso parece tão distante agora...
Ele
acariciou meus cabelos.
-
Você nunca falou sobre isso.
-
É a primeira vez que falo em voz alta. Me custou esforço admitir para mim
mesma.
-
Você está tão mudada, Tessa. E ao mesmo tempo conserva os traços mais
encantadores daquela menina de 22 anos que conheci.
-
Cresci, Inácio. Já era tempo, não?
Ele
sorriu.
-
Quer solidão maior do que essa espécie de
orfandade de nós mesmos, quando passamos a carregar dentro de nós um estranho
que tem nosso nome e nosso rosto, mas que não reconhecemos e com quem não temos
a menor afinidade?
Suas
sobrancelhas se curvaram em sinal de interrogação.
-
Leila Ferreira – eu expliquei.
Nesse
instante, chegamos ao destino: Praia do Jacaré. Inácio pagou a corrida e
descemos.
Engraçado!
Eu achei que custaria a engravidar. Mas foi tudo muito rápido. Compareci à
clínica de reprodução assistida numa quinta-feira pela manhã. Nada foi como eu
imaginava. Na prática, a inseminação artificial era como um exame ginecológico.
O médico abriu a minha vagina com aquele “macaco” e introduziu uma seringa com
um canudinho na ponta que vai até o útero, com o material preparado. No início
da noite, senti um pouco de cólica no baixo ventre, sobre a qual o médico já
havia me advertido, e nada mais. Pouco tempo depois o ultrassom acusou a
gravidez.
Agora
eu estava ali, aos cinco meses de gestação, curtindo as últimas férias antes do
parto. Foi Inácio quem escolheu João Pessoa. Gostei da ideia porque ainda não
conhecia a cidade.
-
Reservei uma mesa para nós – ele disse, me conduzindo a um restaurante, cujo deck dava para a praia.
A
vista era digna de um cartão postal.
Assim
que chegamos à beirada do deck, um
fotógrafo se aproximou e perguntou se podia tirar a nossa foto. Inácio disse
que sim e se postou atrás de mim, envolvendo a minha cintura com as mãos.
Ficamos de perfil para o fotógrafo, que disparou vários flashes, com a praia e o pôr do sol como pano de fundo. Intuí que
ele logo tentaria nos vender aquelas fotos, mas ele partiu sem dizer nada, o
que me desapontou.
Sentamos
à mesa e pedimos nossas bebidas. Nesse instante, o pôr do sol ganhou uma trilha
sonora. Um saxofonista e um violinista começaram a entoar o Bolero de Ravel.
Aquilo me tocou profundamente.
-
Meu amor, eu sei que disse que gostaria de ver o rostinho da nossa filha antes
de escolher o nome, mas acho que mudei de ideia – comecei.
Inácio
me olhou surpreso.
-
É mesmo?!
-
Sonhei com ela. E com um nome para ela.
Ele
ficou em silêncio, na expectativa.
-
É só uma ideia. Você tem poder de veto, ok? – eu disse.
-
Está bem. Qual é o nome?
Respirei
fundo.
-
Mariana – disse, por fim.
Os
olhos dele se encheram de lágrimas.
-
É perfeito, Tessa! – disse e segurou as minhas mãos entre as suas e as beijou.
Então,
o fotógrafo voltou, com uma blusa branca nas mãos. Assim que ele a estendeu na
mesa, eu entendi tudo. A foto já estava estampada nela. E no alto havia a
inscrição: “Agora somos três”. Era a cara de Inácio preparar aquela surpresa.
Vesti
a camiseta por cima do body que
usava. Sim, agora somos três, pensei,
com emoção.
E
algo me ocorreu: sem humanidade, não há sentido. Não sei por quanto tempo eu
seria capaz de sobreviver envolta naquela espécie de inteligência artificial.
Era preciso viver, experimentar, sentir a brisa no rosto, se arriscar e até se
machucar. Faz parte de ser humano. E, sem isso, não há a mínima chance de haver
felicidade.
Não
sei se a maternidade serve para todo mundo. Ou melhor, para toda mulher. Assim
como não sei se a paternidade se ajusta a todo homem. Algo me diz que não. Em
alguns casos, a recusa em ser pai ou mãe será uma questão superável. Em outros,
não; será irrevogável. Por isso, cada experiência é única e deve ser respeitada
como tal.
Eu
fui até a beira do abismo. E me libertei. Hoje conheço as razões em que apoiava
a minha recusa. Elas não existem mais. Descobri que não eram legítimas. E que
eu não tinha mais motivos para fugir.
Se
você me perguntar se vai dar tudo certo, responderei com franqueza: É cedo para
dizer. Não sei que tipo de mãe eu serei. Não sei de que forma a maternidade vai
impactar a minha vida, a minha relação com Inácio, enfim, o meu mundo. Fico
apreensiva ao imaginar alguém dependendo de mim para tudo. Tenho medo de falhar,
de não conseguir. Mesmo assim, decidi encarar. E sei que tenho um companheirão
ao meu lado.
Lá
vou eu mais uma vez: para o eterno recomeço. Para uma nova narrativa. Quem sabe
um dia eu possa contá-la?
“Sei que viver dói. Mas sei também que
não viver dói mais. É a dor incontornável das lacunas, do vazio.”
“Viver é às vezes o mais doloroso dos
exercícios. Mas é também a possibilidade de nos depararmos diariamente com o
que nos apaixona, nos move, nos arrebata, nos causa espanto, nos faz rir.”
(Leila Ferreira)
“O egoísmo pessoal, o comodismo, a
falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isto contribui
para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e
não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for suscetível de
servir aos nossos interesses.”
(José Saramago)
Texto:
Cynthia França
Revisão:
Arilma Peixoto
Colaboração:
Adriano Machado, Anita Lima, Letícia Paratella, Licínio Porto, Lorena Porto,
Lucilene Oliveira, Lucíola Pereira.